Pandemia aumenta pressão na saúde mental dos profissionais de restaurantes

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25/01/2021

 

Rafael Tonon

Nossa Cozinha


Trabalhar no setor de restaurantes nunca foi tarefa fácil: enquanto os cozinheiros lidam com um ambiente em ebulição, em que facas afiadas e panelas fumegantes são tão constantes como a pressão por fazer tudo contra o relógio, no salão, garçons precisam prestar o melhor serviço enquanto gerem as expectativas (e as reclamações) dos clientes.

Soma-se a isso chefs com temperamentos explosivos, jornadas de trabalho extenuantes (muitas vezes em dois turnos) e comportamentos não raro abusivos — e romantizados pelos reality shows dos canais de televisão para entreter suas audiências.

Não por acaso, profissionais do segmento são tão vulneráveis a sofrer distúrbios de ansiedade, depressão, estafa mental, entre outros problemas de saúde mental. Com a pandemia da covid-19, relatam empresários e funcionários, a situação chegou ao limite para muitos.

Isso porque poucos setores foram tão afetados pelas medidas de contenção social como a restauração: fechamentos de estabelecimentos, diminuição nos salários (já que muitos incrementam as rendas com caixinhas) e demissões se tornaram extremamente comuns. Até mesmo cozinheiros e garçons que nunca tiveram problemas de saúde mental antes começaram a ter algumas preocupações recorrentes a perturbar suas mentes.

Alguns deles ouvidos por Nossa (que preferiram não se identificar) relatam ter tido episódios de crise de pânico, enquanto outros precisaram recorrer a remédios para controlar a pressão psicológica imposta nos últimos meses. "O nosso setor já é muito sensível a qualquer mudança de comportamento. Imagine você o abalo que estamos passando agora", confessa o chef Benny Novak, proprietário de restaurantes como o Tappo Trattoria e o ICI Bistrô, em São Paulo, e um dos sócios da Cia. Tradicional de Comércio (que detém marcas como Astor e Bráz). Segundo ele, uma maior ansiedade começou em abril quando empresários e donos de restaurantes perceberam que a situação não duraria somente um mês.

A incerteza, a entrada de dinheiro zerada, a responsabilidade em relação à nossa equipe e famílias: foi tudo diferente de outras crises que já passamos", afirma. "Chamaria até de um certo desespero", confessa. Sua forma de lidar com a situação sem deixar que o clima afetasse a todos foi ser o mais honesto possível com os funcionários. "Eles entenderam e pudemos contar uns com os outros. A ansiedade só está mais controlada, mas ainda muito presente no nosso dia a dia, já que os efeitos da pandemia estão longe de acabar". Ajuda além-mar Pensando nisso, o jornalista Paulo Amado, responsável por alguns dos eventos mais importantes da gastronomia em Portugal, como a Lisbon e a Porto como a Lisbon e a Porto Food Week, percebeu que precisava fazer algo para ajudar os amigos e profissionais do setor nesse momento tão difícil. Em parceria com a Oficina de Psicologia, formada por um grupo de terapeutas, sua empresa, a Edições do Gosto, que também edita uma revista de gastronomia, passou a oferecer treinamentos e vídeos-workshops para líderes e donos de restaurantes saberem lidar melhor com suas equipes nesse período e conseguir identificar aqueles que mais precisam de ajuda. 

Para essa segunda situação, também, são oferecidas sessões individuais de terapia online que são anônimas e gratuitas, de forma a prestar um suporte profissional aos profissionais da restauração.

A pandemia colocou uma pressão inédita em um setor já habituado a elas. Mas muita gente tem precisado de ajuda", explica Amado. "Esse é um setor formado essencialmente por pessoas", complementa ele, que escolheu para a 16a edição de seu Congresso dos Cozinheiros (realizado em novembro passado), justamente o tema Nós as Pessoas.
 Nuno Mendes Duarte, um dos diretores da Oficina de Psicologia, explica que serão cerca de 12 sessões para cada um dos profissionais escolhidos durante os próximos meses de 2021. "Queremos ajudá-los a lidar com o excedente de pressão e ansiedade que tomou o cotidiano nesse período difícil", diz. "E que percebam que é normal que se sintam assim agora". 

"Para não pirar", como diz, a saída da chef Izadora Dantas, que é proprietária do Isla Café, foi "recuar um pouco para olhar a situação com mais calma". Seu negócio, aberto em Pinheiros, ganhou atenção da imprensa e se tornou um sucesso de público. Mas quando vivia a melhor fase, veio a pandemia. "Quando as pessoas estavam desesperadas para abrir o restaurante, a gente deu um passo para trás e decidiu ficar apenas com o delivery", conta ela. Em um cenário tão desconhecido, Izadora preferiu apostar no que poderia ser mais seguro, para evitar novas frustrações. "Acho que ajuda muito não querer fazer aquilo que está fora das nossas possibilidades. O delivery tem dado muito certo, o que nos permitiu respirar também.

A gastronomia é uma área que ficou muito 'celebritizada', e a ideia de insucesso tem um estigma muito grande", diz. A psicologa Izabel Scavazza, diretora da Lince Assessoria, que também oferece ajuda a profissionais do setor através do movimento Machismo na Cozinha, com foco em casos de assédio, diz que a pandemia trouxe sim mais insegurança e pressão à restauração. Mas que elas não podem ser desculpa para as agressividades que ainda imperam na gastronomia.

Alguns chefs, por se destacarem na mídia, tiveram a impressão de que suas atitudes de total desrespeito e de grande abuso físico e moral pudessem 'parecer' normais. Mas cada vez mais estamos reconhecendo o quando esse padrão de comportamento é perverso e perigoso", diz ela. Para a terapeuta, a urgência do tema da saúde mental imposta pela pandemia pode ser uma forma positiva de falarmos mais abertamente sobre ela, reavaliar comportamentos e tentar criar um ambiente que iniba "estragos emocionais".

"Saber identificar e mapear os sentimentos é fundamental para todos nós, especialmente agora. Aprender a identificar o padrão doentio do outro também, porque aí está o segredo, você não é culpado pelo fato do outro ser desrespeitador e abusivo", afirma. Essa insegurança gerada pela crise sanitária e econômica abrangeu todos os ramos, não somente na área da gastronomia, segundo Izabel. A diferença é que a restauração já vinha carregada de outras pressões que passaram a ser entendidas como "parte" do setor.

"Não podemos aceitar abusos e constrangimentos como normais e aceitáveis. Precisamos criar ambientes de trabalho mais equilibrados, acolhedores, em que as pressões comuns não causam danos à saúde mental de ninguém", conclui.